9 de outubro de 2015

Em torno da ficção e da autobiografia

(sobre Trato desfeito: o revés autobiográfico na literatura contemporânea brasileira, de Pedro Galas)

Bruna Ferreira

                         Imagem: Rob Gonsalves                                                                        Fonte: boredpanda.com.

O chamado “pacto autobiográfico” foi proposto por Philippe Lejeune nos anos 1970, em uma tentativa de estabelecer uma definição precisa da autobiografia como um gênero literário. O pacto de “veracidade” da escrita seria estabelecido entre leitor e autor (pretendido por este e confirmado por aquele) a partir da coincidência entre os nomes próprios do narrador de um texto e do autor que o tenha publicado. A fragilidade desta definição foi discutida posteriormente por vários críticos, e sua aplicabilidade na literatura brasileira contemporânea é o tema central da dissertação de mestrado de Pedro Galas, defendida na Universidade de Brasília em 2011, sob orientação da professora Regina Dalcastagnè. Em sua pesquisa, Galas analisa romances e contos de três escritores contemporâneos cujos textos são narrados em primeira pessoa e cujos narradores guardam semelhanças com seus autores: Sérgio Sant’Anna, Bernardo Carvalho e Marcelo Mirisola.
Em Sérgio de Sant’Anna, Galas aponta as contradições de uma escrita de si que ao mesmo tempo em que se pretende confessional e “verdadeira”, questiona a capacidade da linguagem literária de representar o “real”. Na obscura narração de Sant’Anna, nada é transparente, e ainda que o narrador se confesse o eu que assina a capa do livro e, através da escrita, revele coincidências factuais entre um e outro, definir com precisão o que é ficção e o que de fato aconteceu é impossível. Não só a identidade do narrador é sucessivamente colocada em questão pela tessitura da escrita, como são lançadas dúvidas sobre a própria possibilidade de representação de qualquer identidade coerente por meio da palavra.
Ao analisar a obra de Bernardo de Carvalho, Galas identifica o jogo do autor com os nomes próprios no romance As iniciais, em que os personagens são esvaziados de qualquer identidade fixa e isolada. Em vez de indivíduos que preexistem ao convívio social e dele participam inteiros e acabados, Bernardo de Carvalho cria personagens-função, que só existem em relação ao grupo, e que só ganham significado – sempre flutuante – em relação a um outro e ao desenrolar da narrativa. Já em Nove noites, do mesmo autor, encontramos nomes próprios que remetem a pessoas cuja existência poderá ser comprovada factualmente (Buell Quain, Ruth Benedict, Heloísa Alberto Torres) envolvidos em acontecimentos de uma busca misteriosa que tanto poderá ser real quanto imaginária – a depender da credulidade do leitor que acabará por ter que reconhecer que “neste pacto autobiográfico, somente ele assinou o contrato; o narrador, omisso, se esquivou e o trato foi desfeito”.
Se Sérgio Sant’Anna e Bernardo de Carvalho lançam contínua e conscientemente dúvidas sobre a coincidência entre as opiniões e vivências de seus narradores homônimos e as suas próprias, Marcelo Mirisola parece pretender, segundo a pesquisa de Pedro Galas, identificar-se inteiramente com a persona construída em sua ficção. Mirisola esforça-se por criar uma coerência entre todos os seus narradores – cínicos, críticos do politicamente correto, pretensamente viscerais – e a sua figura pública de autor que se expõe em diversas outras mídias. O autor Mirisola seria, então, um performer, personagem de si mesmo – e contraditoriamente é essa insistência em ser sempre e sistematicamente “autêntico”, dentro e fora dos livros, que nos faz duvidar da “veracidade” desse autor-personagem midiático.
A relação entre literatura e outras mídias é, aliás, o que faz com que Galas inclua em sua discussão mais duas obras: Chove sobre minha infância e O filho eterno, de Miguel Sanches Neto e Cristóvão Tezza, respectivamente. A extensa atividade pública de autocomentário dos dois autores – em uma dinâmica cultural focada no entretenimento e no espetáculo da “vida real” que quase os obriga a isso – leva o crítico a questionar a resistência dos dois autores em assumirem-se publicamente como escritores “autobiográficos”. Para Sanches Neto e Tezza, conclui Galas, assumir o viés autobiográfico de seus romances diminuiria o caráter artificioso – e por isso especial, difícil, “digno de mérito” – de suas obras de ficção: “O escritor procura demarcar as fronteiras: o material que sustenta a obra é autobiográfico; o engenho que o modela é ficcional”.
Esta profusão de escritas de si e narradores em primeira pessoa na literatura contemporânea brasileira está associada, segundo afirma Galas no trabalho que brevemente apresento aqui, a uma intenção de reorganização de uma identidade coerente a partir do discurso. Extrapolando as fronteiras da ficção, na era do “culto da personalidade”, os escritores veem-se a si mesmos transformados em personagens de uma indústria de entretenimento que os transforma em celebridades a serem vistas em festas literárias e em gurus que tudo revelam em repetitivas entrevistas.
É nas fissuras destas contradições do nosso tempo que, por um lado, evidencia o caráter fragmentário, múltiplo e descontinuado do eu, e, por outro – e talvez por isso mesmo – tudo faz para construir narrativas sólidas, coerentes e críveis de personalidades da “vida real”, que autor e leitor se movem e se cortejam, ora cúmplices, ora desconfiados, mas talvez sempre nos domínios da ficção.

Confira o conteúdo completo da dissertação de Pedro Galas, Trato desfeito: o revés autobiográfico na literaturacontemporânea brasileira  (2011, Universidade de Brasília) no novo site do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.