6 de fevereiro de 2016

Na noite calunga do bairro Cabula


Imagem: Vladimir Velickovic

Há exatamente um ano, policiais militares assassinavam 12 jovens negros (a campanha “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” diz que foram 13) no bairro do Cabula, na periferia de Salvador. Nenhum dos nove policiais envolvidos no crime foi punido.
Foram mortos Evson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo Vilas Boas Silvia, 27, Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luis Pereira Rodrigues, 21, Adriano de Souza Guimarães, 21, Vitor Amorim de Araujo, 19, Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19, Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa, 17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17, e Caique Bastos dos Santos, 16 anos.

Ricardo Aleixo escreveu o poema abaixo na época, para que eles não sejam esquecidos.


Na noite calunga do bairro Cabula
Ricardo Aleixo

Morri quantas vezes
na noite mais longa?

Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,

morri quantas vezes
na noite calunga?

A noite não passa
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem nome e de novo

morrendo a cada
outro rombo aberto

na musculatura
do que um dia eu fui.

Morri quantas vezes
na noite mais rubra?

Na noite calunga,
tão espessa e longa,

morri quantas vezes
na noite terrível?

A noite mais morte
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem voz e outra vez

morria a cada
outra bala alojada

no fundo mais fundo
do que eu ainda sou

(a cada silêncio
de pedra e de cal

que despeja o branco
de sua indiferença

por cima da sombra
do que eu já não sou

nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes

na noite calunga?
Na noite trevosa,

noite que não finda,
a noite oceano, pleno

vão de sangue,
morri quantas vezes

na noite terrível,
na noite calunga

do bairro Cabula?
Morri tantas vezes

mas nunca me matam
de uma vez por todas.

Meu sangue é semente
que o vento enraíza

no ventre da terra
e eu nasço de novo

e de novo e meu nome
é aquele que não morre

sem fazer da noite
não mais a silente

parceira da morte
mas a mãe que pare

filhos cor da noite
e zela por eles,

tal qual uma pantera
que mostra, na chispa

do olhar e no gume
das presas, o quanto

será capaz de fazer
se a mão da maldade

ao menos pensar
em perturbar o sono

da sua ninhada.
Morri tantas vezes

mas sempre renasço
ainda mais forte

corajoso e belo
só o que sei é ser.

Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora

e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos

que um dia eu faço
a vida viver.

(Este poema faz parte do livro Impossível como nunca ter tido um rosto, de Ricardo Aleixo. Belo Horizonte: Edição do autor, 2015).

NOTA DO AUTOR

O poema “Na noite calunga do bairro Cabula” foi escrito especialmente para a revista O Menelick 2° Ato, e versa sob o impacto do massacre, por integrantes da Polícia Militar, de 13 jovens negros da periferia de Salvador, na Bahia, na noite do dia 6 de fevereiro de 2015. O trágico episódio foi batizado por integrantes da campanha “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” de Chacina do Cabula, nome do bairro onde residiam os rapazes assassinados.

Jogando com a dupla acepção da palavra calunga – mar e morte –, o poema, que li, pela primeira vez, em público, durante debate de que participei em 23 de março de 2015 no Salão do Livro de Paris, organiza-se, a um só tempo, como um protesto contra a naturalização das práticas de extermínio da juventude negra no Brasil e em diversos outros países e como um elogio da Resistência Ativa, em nome da Vida.

Dedico-o às minhas filhas Iná e Flora e ao meu filho Ravi.

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