31 de março de 2016

QUEM PENSA O BRASIL, NÃO ACEITA O GOLPE



Foto: Janine Moraes


No momento em que parcelas do judiciário e da polícia, da mídia, do empresariado e da elite política conservadora tramam a derrubada do governo eleito e a retirada de nossos direitos, muito se unem em defesa da democracia. Somos intelectuais, artistas, escritoras e escritores, cientistas, professoras e professores, militantes, dizendo “não!” ao retrocesso, em favor de um país mais democrático, mais justo e mais solidário.

Caso você tenha acesso a algum outro manifesto que não esteja listado aqui, mande o link para nós pelo e-mail: manifestosdemocracia@gmail.com



Advogados e professores de Direito

Advogados, juristas e professores de Direito


Associação Brasileira de Antropologia – ABA

Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP

Associação de Centros e Museus de Ciência – ABCMC

Associação Brasileira de Hispanistas – ABH

Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN

Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC

Associação Brasileira de Pesquisa em Educação e Ciência – ABRAPEC

Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política – COMPOLITICA
http://www.compolitica.org/home/?p=1801

Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo SPBJor

Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa ABRAPLIP https://drive.google.com/file/d/0B9n4fuYanDePbWQzME9PVjNTaUU/view?pref=2&pli=1

Associação Brasileira de Psicologia Social

Associação de Linguística Aplicada do Brasil – ALAB

Associação dos Docentes da Unicamp

Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior –ANDIFES

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – COMPÓS
http://www.compos.org.br/ler_noticias.php?idNoticia=Mjc0&tipoNoticia=geral


Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – ANPOLL 

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR

Atores, diretores e teatrólogos brasileiros
Brown University, Acadêmicos Jim Green e Renan Quinalha

Carta Aberta de Professores Universitários e Pesquisadores Brasileiros à Comunidade Acadêmica Internacional

Cineastas, atores e técnicos do audioviosual

Comitê Gestor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos  INCT – InEAC, http://www.portal.abant.org.br/images/Noticias/INCT-InEAC.pdf

Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica – CONIF

Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - CONIC
Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe
https://www.facebook.com/maria.v.rezende/posts/10208833320688322

Duke University – Global Brazil Humanities Lab

Escritores e Profissionais do Livro
Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ

Fórum Universitário Mercosul – FOMERCO

Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste – GELNE

Igreja Episcopal Anglicana do Brasil

Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE

Intelectuais, artistas e advogados gaúchos

Intelectuais estrangeiros 

Jornalistas

Jornalistas Pernambucanos

Manifesto Mundial de 8 mil juristas contra o golpe
http://www.leiaja.com/politica/2016/04/13/oito-mil-juristas-lancam-manifesto-mundial-contra-golpe/

Músicos pela Democracia
http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR90039

Movimento Hip Hop Brasileiro contra o Golpe
http://www.ocafezinho.com/2016/03/24/movimentos-de-hip-hop-de-todo-o-pais-se-unem-a-luta-contra-o-golpe/

Periferias

Pesquisadores e estudantes brasileiros no exterior

Povos e comunidades tradicionais do Sul do País

Professores de Direito da Universidade de Brasília

Professores, servidores técnico-administrativos e estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES

Professores de História da Universidade Federal Fluminense – UFF

Professores, técnicos administrativos e estudantes Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Rondonópolis

Professores, técnicos administrativos e estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Professores da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Professores da Universidade de Caxias do Sul
ONU Mulheres

Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional RJ

Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual

Sociedade Brasileira de Sociologia

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Universidade Estadual de Campinas – Unicamp

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ


26 de março de 2016

Para não dizer que não falei daquela noite

Rosângela Lopes da Silva


                                                                                                                          Imagem: Regina Dalcastagnè



Conheça Brasília de metrô. Convida a placa no hall de entrada da Estação de Ceilândia. É noite. Sento do lado direito, próximo à janela. As portas se fecham. Lá fora os trilhos vibram. Lá fora as luzes iluminam Ceilândia. As casas cada vez menores. Carros. Cachorros. Um homem caminhando sozinho, uma roda gigante. Tudo escuro. Túnel. Estação Ceilândia Norte. Conheça Brasília de metrô. Não ultrapasse a faixa amarela. 

Lá fora um vento forte. Não o sinto. Vejo-o nos movimentos dos cabelos; das roupas de um varal improvisado entre a janela do quarto e a varanda; no toldo de um carrinho de frutas. Goiaba, manga, morangos. As casas cada vez menores. O túnel. Guariroba. O mundo em movimento lá fora. Ceilândia Sul. Os trilhos em curva. Sobe. Ceilândia se abre em pequenas luzes amarelas lá embaixo. A cidade acontecendo como um espetáculo. Túnel. Estação Metropolitana. "Next station: Praça do Relógio". Relógio?

Rodoviária. Carros. Mata. Concreto. Túnel. Prédios. Prédios ainda mais altos. Concessionárias. Prédios altíssimos. Águas Claras. Arniqueiras. Na janela uma menina de cabelos ruivos e camiseta azul toca violão. As estrelas. As árvores. Dentro, um garoto vende balinhas. Um atleta paraolímpico expõe suas medalhas. Um pedido de ajuda para conquistar um novo ouro para o Brasil. Lá fora o céu. Estação Feira. Cerrado. Uma casa. Cerrado. Cerrado. Estação Shopping. Carros. Semáforo. Concreto. Escuro. Túnel. Escuro. Luzes amarelas seguem o ritmo do movimento do metrô. Ficam para trás. Túnel. Concreto. Escuro. Túnel. Túnel. Escuro. Concreto. Túnel. Estação Central. Portas abertas. Passos apressados. Escada. Passos apressados. "Pegue o seu chip aqui. É de graça. O melhor plano de telefonia móvel do Brasil". Escada. Passos apressados. Escadas. Plataforma C. Sapatos. Frutas. Passos apressadas. Plataforma A. Biblioteca Nacional. Catedral. Brasília. 

"Talvez de ônibus conheceria melhor a cidade". Talvez. Ontem, no entanto, não vim a Brasília de ônibus. Nem de metrô. Ontem precisei vir de moto. Não porque preferi. É o plano. Não o meu plano ou o do meu companheiro, que decidiu me acompanhar, mas o piloto. Aquele que silencia os trilhos do metrô às vinte e três horas e quarenta e cinco minutos nos dias de semana e às dezenove horas nos domingos e feriados. O que recolhe os ônibus antes da meia noite. Não queria também ser recolhida. Era sexta à noite. Por mais que soe alerta sobre as dificuldades de retornar à MNorte após a meia noite, minha audição birrenta, de gata borralheira, nem sempre me deixa obedecer a esse toque. 

Chegamos ao Cruzeiro às vinte horas. Restaurante do Marzinho. Conversa. Música. Peixe frito. Bebida. Uma amiga avisa que precisa voltar de ônibus. Pressa. Carona até a rodoviária. DF trans online. Ônibus às 00h20. Espera. Angústia. Nada do ônibus chegar. Meu companheiro, gentilmente, a leva em casa. Enquanto isso, aguardo seu retorno na rodoviária. Eu, os funcionários noturnos "fazendo música com o movimento dos rodos, das vassouras e dos chicletes retirados do chão. Você ouve? Você sente?". No banco ao lado, um casal com três crianças pequenas – "todas protegidas sobre o corpo da mãe, cobertas pela noite". Ao lado um homem caminha desordenado. Fala palavras desconexas. "Palavras cujo sentido está tão dentro dele que é impossível alguém penetrar". 

Do outro lado, próximo à biblioteca nacional, a polícia acorda os mendigos. Falam alto, mas não consigo entender. "É porque, às vezes, as palavras se confundem com a violência com que são colocadas para fora. Se chocam. Se misturam. Se batem. Aí fica difícil ouvir". Próximo à banca de revistas, um homem negro, descalço. "Passa todas as noites na rodoviária. Pensa ser sua missão defender as mulheres dos malandros que circulam por aqui. Não sei o que aconteceu na vida dele para pensar assim. Sabe, moça, ele é uma das pessoas mais sensíveis que eu já conheci no mundo. Ele é sensível à dor do mundo, eu acho. A gente consegue ver essa sensibilidade no olhar dele. É só amor lá dentro". 

Também havia um poeta. Um vendedor de algodão doce. Narrou todas essas vidas para mim. Um homem negro, alto, sorridente. Um contador de causos. Disse-me que estava muito triste, pois só encontraria a mulher e os filhos no dia seguinte. Mas já havia se acostumado. Trabalhava até mais tarde e não havia como voltar para casa. Me ofereceu um algodão doce. Falei que estava sem dinheiro. "É um presente para deixar a sua noite mais colorida". Também deu algodão doce – de cores diferentes – para as crianças que, agora, estavam sentadas ao meu lado. A mãe e o pai procuravam alguma solução para voltarem para casa. "Um táxi?". "Não. É muito caro! Não temos como pagar". "Mas as crianças não podem dormir aqui!". "Acho que tem um ônibus às três, vamos esperar. Vai dar tudo certo". 

Ouvi as histórias do poeta. Ouvi também a menina de quinze anos, mãe das três crianças. Os "probleminhas" que provocaram sua fuga de casa. A decepção em ter que levar as crianças para o trabalho. Ganhei um poema feito para mim. Ouvi a noite em forma de poesia. Falei sobre Carolina Maria de Jesus, de sua escrita em papéis encontrados na rua, de seus poemas, de suas músicas, dos sapatinhos que sonhava comprar para a filha Vera. Olhos entusiasmados. Um poeta. A noite em versos. Falado. "Falado?". "Sim, falado. Porque a minha poesia não é para ser escrita não, moça. A minha poesia nasce e morre no momento. Ela só é eterna na memória daqueles que me ouvem. Eu falo e ela fica ali para sempre. Não do jeito que falei, mas do jeito que chegou lá. Vibrante. Passageira. Porque assim é a vida, moça". Não me lembro de todas as palavras ditas. Nem mesmo se foi esse o ritmo com o qual as palavras se misturaram à brisa e ao silêncio de Brasília. "O que está fazendo?". "Anotando as suas palavras. Vou escrever sobre a sua poesia amanhã". O poeta sorriu. "Sobre mim? Sobre essas besteiras que eu falei?". "Sim, achei tudo lindo. Um poeta chamado Manoel de Barros, certa vez escreveu um poema sobre um menino que carregava água na peneira, um menino que construía casas sobre orvalhos, que fez uma pedra dar flor. O senhor, para mim é esse menino: um poeta que será lembrado por seus despropósitos, por essas besteiras aí". Agradeceu. "Não mereço tudo isso. Você é gentil. Mas foi bom saber que pareço um menino. Queria mesmo ser uma criança". Sorrimos. "Preciso procurar um lugar quente onde possa descansar". Disse e saiu assobiando. Misturado aos algodões coloridos. 

A buzina. Um até mais. A polícia. Os mendigos. As luzes lá atrás. O silêncio sendo aborrecido pelo barulho da moto. No reflexo do retrovisor, Brasília cada vez mais distante. 


*Este texto faz parte da pesquisa Narrativas da cidade: Brasília e a experiência urbana na literatura brasileira contemporânea, coordenada pela profª Regina Dalcastagnè.

19 de março de 2016

O espaço do eu na literatura contemporânea

Luciana Hidalgo


Marisol - Dinner Date (1963)

Num mundo globalizado, mas ainda tão fragmentado por fronteiras geográficas, línguas e religiões, nota-se cada vez mais uma globalização do eu, sutil mas sólida, que aproxima subjetividades e trata em última análise do humano. O fenômeno da autoficção reflete essa tendência na literatura. Algumas narrativas autoficcionais ajudam a recuperar um eu disperso ou ferido, enquanto outras têm maior acento político-social.
Ao olhar em retrospectiva a história da literatura, percebe-se que o eu sempre foi um tema presente, sendo mais ou menos assumido por inúmeros autores. Mas a grande chancela só veio quando Serge Doubrovsky inventou o neologismo autofiction, inscrevendo-o na quarta capa de seu romance Fils (1977). De lá para cá o termo é usado das mais variadas formas, inaugurando um vasto e movediço território de contradições, polêmicas e indefinições na teoria da literatura.
Com rigor científico, estudiosos tentam até hoje inocular o conceito, discernir o gênero, ou seja, diferenciar a autoficção do romance autobiográfico circunscrito pelo teórico Philippe Lejeune. E, quanto menos provável é a unanimidade a respeito do assunto, mais autores escrevem ficções centradas no auto.
A palavra autofiction, ao se globalizar e se dicionarizar, conquista uma autonomia insuspeita, sendo cada vez mais empregada subjetivamente nas mais diversas línguas. Mas o que chama atenção nesse processo mais ou menos espontâneo é esse décalage entre o que o escritor apresenta como autoficção e o que o crítico considera autoficção. Existe, sem dúvida, uma fragilidade nos discursos, de ambos os lados.
De início muitos teóricos caíram na tentação de associar à autoficção obras anteriores ao neologismo, como se fosse um dispositivo com efeito retroativo. Mas várias polêmicas surgiram, inclusive alguns autores contemporâneos recusaram o rótulo (como a francesa Annie Ernaux), e coube então ao próprio Doubrovsky, romancista e professor de literatura, tentar embasar melhor a sua invenção.
Estudiosa da obra de Lima Barreto, logo percebi o quanto esse autor teria se encaixado (extemporaneamente) na ideia de autoficção. Pois Lima não só escreveu o romance O cemitério dos vivos totalmente centrado em sua experiência de paciente psiquiátrico, como ainda escreveu Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá dando seu próprio nome, Afonso, a um personagem. E somente na correção final do romance, deixou que cortassem seu nome do manuscrito. Se tivesse deixado seu nome, Afonso Henriques de Lima Barreto teria inaugurado o homonimato na literatura brasileira, precursor de um conceito-vírus que contagiaria o século seguinte.
Se aqui cito Lima Barreto, é no intuito de situar a prática autoficcional numa linhagem que a partir dos anos 2000 ganharia importância, consolidando o espaço do eu na literatura brasileira contemporânea. Os limites desse espaço permanecem um tanto flous, mas isso não impede que a produção autoficcional avance.
Na tentativa de aparar bordas e delimitar territórios, Doubrovsky vem estabelecendo premissas para definir a autoficção, cada vez mais precisas. Por exemplo: além da identidade onomástica, o escritor de autoficcão deve antes de tudo assumir que conta uma história verdadeira. Para além do que o conceito verdade tem de generalizado e suspeito, o autor deve deixar claro que ficcionaliza intimidades. E estas, uma vez dispersas na ficção, deixam de ser tratadas como reais para entrar no universo do ficcional.
O fenômeno da autoficção se consolidou na França a partir principalmente da reivindicação feita por autores como Camille Laurens e Philippe Vilain, por exemplo, de que partiam de histórias pessoais para a construção de seus romances. Posteriormente, o neologismo de Doubrovsky correu o mundo, sendo reproduzido no Brasil de forma mais lenta e espontânea, contudo não menos polêmica.
Na literatura brasileira contemporânea, Silviano Santiago foi provavelmente o primeiro autor a apresentar seu livro de contos, Histórias mal contadas (ed. Rocco), em 2005, como autoficção. Em 2007 o termo autoficção surgiu estampado na orelha de outro romance, A chave da casa (ed. Record), de Tatiana Salem Levy. No entanto, nesses dois livros o homonimato não se confirma. Silviano, embora tenha lançado o neologismo de Doubrovsky ao falar da obra, prefere fragmentar o eu em personagens anônimos, e apenas no conto “Vivo ou morto” insinua a sua identidade ao inventar o codinome Santiago para um personagem.
A linhagem doubrovskiana de estudo da autoficção se impõe cada vez mais pela importância da identidade onomástica, fundamental num eu que se assume. Dar o próprio nome ao narrador-personagem é um ato fundador de grande relevância na ficção. O neologismo quebra tabus e parece autorizar escritores a delimitar o espaço do eu na ficção. Porque a autoficção é também uma recusa à hipocrisia em dissimular na ficção o eu premente.
Não basta mais a mera suspeita a respeito de semelhanças entre protagonista e autor-narrador. Se o autor nega a identidade, não assume a história pessoal que dá origem à sua ficção, não há razão para que o crítico classifique sua obra como autoficção.
No Brasil, apesar de um pretenso sucesso das narrativas autoficcionais contemporâneas na mídia, o homonimato doubrovskiano surge timidamente. Rodrigo de Souza Leão, por exemplo, escreveu o romance Todos os cachorros são azuis (de 2008) em primeira pessoa e só na última página deixou escapar seu nome, Rodrigo, no personagem-narrador.
Em 2010 o escritor Gustavo Bernardo lançou o romance O gosto do apfelstrudel (ed. Escrita Fina), onde ficcionaliza seus dias no hospital diante da agonia de seu pai em coma. O narrador não tem nome, apenas G., a inicial do autor, ou seja, ele quase assumiu o homonimato, mas ainda abreviado, com certo pudor.
No mesmo ano José Castello lançou Ribamar (ed. Record), um dos exemplos mais sólidos de autoficção no Brasil. Apesar do autor não tê-lo escrito sob a apelação autoficção, o romance acumula inúmeros critérios listados por Doubrovsky ao definir o termo. E o mais importante: o protagonista se chama José.
O homonimato começa a nortear a autoficção brasileira, levando autores como Ricardo Labuto Gondim a não só deixar seu nome nos narradores-personagens de alguns de seus contos do livro Deus no labirinto (ed. Baluarte) como também a centrar a própria trama na identidade onomástica.
No conto “O neutrino”, por exemplo, Ricardo Labuto Gondim conta uma história em torno de um homônimo Ricardo Gondim, personagem fantasmático que surge inúmeras vezes ao longo da narrativa, deixando-o perplexo. O autor não só assume seu nome no conto, como exerce de forma sutil uma metaficção que brinca consigo mesmo, com seus homônimos, com o autoestranhamento e com a questão do narcisismo.
A trama é a seguinte: o personagem principal, chamado Ricardo Gondim, um dia descobre que em séculos diversos um mesmo maestro, chamado Ricardo Gondim, regeu inúmeras sinfonias. O personagem-narrador desconfia, afinal ele é um profundo conhecedor da história da música e em leituras anteriores nunca tinha deparado com seu próprio nome num maestro. Quando vários amigos comentam que têm visto o nome do maestro Ricardo Gondim, ele volta aos livros e confere: diversos maestros com o mesmo nome constam de verbetes que ele um dia leu com outros nomes.
A trama é bem resolvida no final, quando o personagem encontra seu duplo na rua, e este explica a origem do homonimato. Percebe-se enfim o quanto o narcisismo do autor-narrador-personagem é um pseudonarcisismo, pois o eu se dilui em homônimos, totalmente fragmentado, num jogo de espelhos em que o ego é estilhaçado. Se aqui cito esse conto é para mostrar como o próprio narcisismo, frequente na autoficção, é cada vez mais desconstruído e até mesmo ironizado pelos próprios autores.
Coube ao teórico Philippe Gasparini, em Autofiction: une aventure du langage (éd. Seuil, 2008), revelar uma característica muito peculiar na autoficção: “Os heróis desses romances são em geral parentes dos autores: o pai, a mãe, os filhos”. Curioso: mesmo quando fala de si mesmo, o autor de autoficção se coloca em relação a outras pessoas. Isso porque o eu não é um elemento absoluto e sim relativo, pensado e exposto a partir da relação com o outro.
Embora as conclusões de Philippe Gasparini em geral se refiram a autores franceses, alguns romances brasileiros incluem-se cada vez mais nessas noções. Quando o teórico fala de autoficções-luto, por exemplo, de autoficções construídas a partir de grandes traumas, é impossível não lembrar os já citados romances Ribamar, de José Castello, e O gosto do apfelstrudel, de Gustavo Bernardo, assim como O filho eterno, de Cristóvão Tezza, em que o autor escreve sobre o filho com síndrome de Down, num paradoxal luto por um nascimento.
Em vez de encarnar o mito de Narciso, o autor que escreve ficção a partir de uma experiência pessoal traumática às vezes está mais para Sísifo, incapaz de sair de seu ir-e-vir doentio, rolando para sempre o seu eu devastado como uma imensa pedra, para cima e para baixo, numa montanha sem fim. O eu ferido tenta se reestruturar à la Freud, ou seja, voltando sempre ao trauma para reintegrá-lo no universo psíquico por meio da escrita – e cada vez mais por meio da autoficção.
O que se percebe na autoficção brasileira é esse eu fruto de um trauma, que pode também ser um trauma coletivo, como a violência decorrente da desigualdade social explícita na sociedade brasileira e que explode em ficções como Cidade de Deus, ou mesmo em ficções autorreferentes de tom manifestamente político, a exemplo de Capão Pecado, de Férrez. Nelas, embora o homonimato ainda não esteja assumido, esse espaço do eu se amplia, saindo totalmente de um registro narcísico para se exteriorizar e se mesclar à geografia político-social que o desestrutura. Esse eu às vezes apela para uma autoficção-limite e se engaja nisso que gosto de chamar de narcisismo útil.
O eu, afinal, não é uma entidade mítica/mística isolada, distanciada do mundo e engolida pelo narcisismo. Pelo contrário, todo eu é invariavelmente fruto de uma cultura, de um país ou de uma diáspora e, ao se expressar, muitas vezes levanta questões coletivas relevantes, contribuindo, em sua micro-história, para reflexões mais amplas.
Termino citando Victor Hugo, que ainda no século XIX já antecipava toda essa questão numa frase que ficou célebre: “Quando digo eu, é de todos vocês que estou falando, seus infelizes!”


*Esse texto é parte da comunicação homônima apresentada na Université Paris-Sorbonne durante o “IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea: Práticas do Espaço”, organizado por Claire Williams (St. Peter’s College, University of Oxford), José Leonardo Tonus (Université Paris-Sorbonne) e Regina Dalcastagnè (Universidade de Brasília) entre 14 e 20 de janeiro de 2015.