19 de março de 2016

O espaço do eu na literatura contemporânea

Luciana Hidalgo


Marisol - Dinner Date (1963)

Num mundo globalizado, mas ainda tão fragmentado por fronteiras geográficas, línguas e religiões, nota-se cada vez mais uma globalização do eu, sutil mas sólida, que aproxima subjetividades e trata em última análise do humano. O fenômeno da autoficção reflete essa tendência na literatura. Algumas narrativas autoficcionais ajudam a recuperar um eu disperso ou ferido, enquanto outras têm maior acento político-social.
Ao olhar em retrospectiva a história da literatura, percebe-se que o eu sempre foi um tema presente, sendo mais ou menos assumido por inúmeros autores. Mas a grande chancela só veio quando Serge Doubrovsky inventou o neologismo autofiction, inscrevendo-o na quarta capa de seu romance Fils (1977). De lá para cá o termo é usado das mais variadas formas, inaugurando um vasto e movediço território de contradições, polêmicas e indefinições na teoria da literatura.
Com rigor científico, estudiosos tentam até hoje inocular o conceito, discernir o gênero, ou seja, diferenciar a autoficção do romance autobiográfico circunscrito pelo teórico Philippe Lejeune. E, quanto menos provável é a unanimidade a respeito do assunto, mais autores escrevem ficções centradas no auto.
A palavra autofiction, ao se globalizar e se dicionarizar, conquista uma autonomia insuspeita, sendo cada vez mais empregada subjetivamente nas mais diversas línguas. Mas o que chama atenção nesse processo mais ou menos espontâneo é esse décalage entre o que o escritor apresenta como autoficção e o que o crítico considera autoficção. Existe, sem dúvida, uma fragilidade nos discursos, de ambos os lados.
De início muitos teóricos caíram na tentação de associar à autoficção obras anteriores ao neologismo, como se fosse um dispositivo com efeito retroativo. Mas várias polêmicas surgiram, inclusive alguns autores contemporâneos recusaram o rótulo (como a francesa Annie Ernaux), e coube então ao próprio Doubrovsky, romancista e professor de literatura, tentar embasar melhor a sua invenção.
Estudiosa da obra de Lima Barreto, logo percebi o quanto esse autor teria se encaixado (extemporaneamente) na ideia de autoficção. Pois Lima não só escreveu o romance O cemitério dos vivos totalmente centrado em sua experiência de paciente psiquiátrico, como ainda escreveu Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá dando seu próprio nome, Afonso, a um personagem. E somente na correção final do romance, deixou que cortassem seu nome do manuscrito. Se tivesse deixado seu nome, Afonso Henriques de Lima Barreto teria inaugurado o homonimato na literatura brasileira, precursor de um conceito-vírus que contagiaria o século seguinte.
Se aqui cito Lima Barreto, é no intuito de situar a prática autoficcional numa linhagem que a partir dos anos 2000 ganharia importância, consolidando o espaço do eu na literatura brasileira contemporânea. Os limites desse espaço permanecem um tanto flous, mas isso não impede que a produção autoficcional avance.
Na tentativa de aparar bordas e delimitar territórios, Doubrovsky vem estabelecendo premissas para definir a autoficção, cada vez mais precisas. Por exemplo: além da identidade onomástica, o escritor de autoficcão deve antes de tudo assumir que conta uma história verdadeira. Para além do que o conceito verdade tem de generalizado e suspeito, o autor deve deixar claro que ficcionaliza intimidades. E estas, uma vez dispersas na ficção, deixam de ser tratadas como reais para entrar no universo do ficcional.
O fenômeno da autoficção se consolidou na França a partir principalmente da reivindicação feita por autores como Camille Laurens e Philippe Vilain, por exemplo, de que partiam de histórias pessoais para a construção de seus romances. Posteriormente, o neologismo de Doubrovsky correu o mundo, sendo reproduzido no Brasil de forma mais lenta e espontânea, contudo não menos polêmica.
Na literatura brasileira contemporânea, Silviano Santiago foi provavelmente o primeiro autor a apresentar seu livro de contos, Histórias mal contadas (ed. Rocco), em 2005, como autoficção. Em 2007 o termo autoficção surgiu estampado na orelha de outro romance, A chave da casa (ed. Record), de Tatiana Salem Levy. No entanto, nesses dois livros o homonimato não se confirma. Silviano, embora tenha lançado o neologismo de Doubrovsky ao falar da obra, prefere fragmentar o eu em personagens anônimos, e apenas no conto “Vivo ou morto” insinua a sua identidade ao inventar o codinome Santiago para um personagem.
A linhagem doubrovskiana de estudo da autoficção se impõe cada vez mais pela importância da identidade onomástica, fundamental num eu que se assume. Dar o próprio nome ao narrador-personagem é um ato fundador de grande relevância na ficção. O neologismo quebra tabus e parece autorizar escritores a delimitar o espaço do eu na ficção. Porque a autoficção é também uma recusa à hipocrisia em dissimular na ficção o eu premente.
Não basta mais a mera suspeita a respeito de semelhanças entre protagonista e autor-narrador. Se o autor nega a identidade, não assume a história pessoal que dá origem à sua ficção, não há razão para que o crítico classifique sua obra como autoficção.
No Brasil, apesar de um pretenso sucesso das narrativas autoficcionais contemporâneas na mídia, o homonimato doubrovskiano surge timidamente. Rodrigo de Souza Leão, por exemplo, escreveu o romance Todos os cachorros são azuis (de 2008) em primeira pessoa e só na última página deixou escapar seu nome, Rodrigo, no personagem-narrador.
Em 2010 o escritor Gustavo Bernardo lançou o romance O gosto do apfelstrudel (ed. Escrita Fina), onde ficcionaliza seus dias no hospital diante da agonia de seu pai em coma. O narrador não tem nome, apenas G., a inicial do autor, ou seja, ele quase assumiu o homonimato, mas ainda abreviado, com certo pudor.
No mesmo ano José Castello lançou Ribamar (ed. Record), um dos exemplos mais sólidos de autoficção no Brasil. Apesar do autor não tê-lo escrito sob a apelação autoficção, o romance acumula inúmeros critérios listados por Doubrovsky ao definir o termo. E o mais importante: o protagonista se chama José.
O homonimato começa a nortear a autoficção brasileira, levando autores como Ricardo Labuto Gondim a não só deixar seu nome nos narradores-personagens de alguns de seus contos do livro Deus no labirinto (ed. Baluarte) como também a centrar a própria trama na identidade onomástica.
No conto “O neutrino”, por exemplo, Ricardo Labuto Gondim conta uma história em torno de um homônimo Ricardo Gondim, personagem fantasmático que surge inúmeras vezes ao longo da narrativa, deixando-o perplexo. O autor não só assume seu nome no conto, como exerce de forma sutil uma metaficção que brinca consigo mesmo, com seus homônimos, com o autoestranhamento e com a questão do narcisismo.
A trama é a seguinte: o personagem principal, chamado Ricardo Gondim, um dia descobre que em séculos diversos um mesmo maestro, chamado Ricardo Gondim, regeu inúmeras sinfonias. O personagem-narrador desconfia, afinal ele é um profundo conhecedor da história da música e em leituras anteriores nunca tinha deparado com seu próprio nome num maestro. Quando vários amigos comentam que têm visto o nome do maestro Ricardo Gondim, ele volta aos livros e confere: diversos maestros com o mesmo nome constam de verbetes que ele um dia leu com outros nomes.
A trama é bem resolvida no final, quando o personagem encontra seu duplo na rua, e este explica a origem do homonimato. Percebe-se enfim o quanto o narcisismo do autor-narrador-personagem é um pseudonarcisismo, pois o eu se dilui em homônimos, totalmente fragmentado, num jogo de espelhos em que o ego é estilhaçado. Se aqui cito esse conto é para mostrar como o próprio narcisismo, frequente na autoficção, é cada vez mais desconstruído e até mesmo ironizado pelos próprios autores.
Coube ao teórico Philippe Gasparini, em Autofiction: une aventure du langage (éd. Seuil, 2008), revelar uma característica muito peculiar na autoficção: “Os heróis desses romances são em geral parentes dos autores: o pai, a mãe, os filhos”. Curioso: mesmo quando fala de si mesmo, o autor de autoficção se coloca em relação a outras pessoas. Isso porque o eu não é um elemento absoluto e sim relativo, pensado e exposto a partir da relação com o outro.
Embora as conclusões de Philippe Gasparini em geral se refiram a autores franceses, alguns romances brasileiros incluem-se cada vez mais nessas noções. Quando o teórico fala de autoficções-luto, por exemplo, de autoficções construídas a partir de grandes traumas, é impossível não lembrar os já citados romances Ribamar, de José Castello, e O gosto do apfelstrudel, de Gustavo Bernardo, assim como O filho eterno, de Cristóvão Tezza, em que o autor escreve sobre o filho com síndrome de Down, num paradoxal luto por um nascimento.
Em vez de encarnar o mito de Narciso, o autor que escreve ficção a partir de uma experiência pessoal traumática às vezes está mais para Sísifo, incapaz de sair de seu ir-e-vir doentio, rolando para sempre o seu eu devastado como uma imensa pedra, para cima e para baixo, numa montanha sem fim. O eu ferido tenta se reestruturar à la Freud, ou seja, voltando sempre ao trauma para reintegrá-lo no universo psíquico por meio da escrita – e cada vez mais por meio da autoficção.
O que se percebe na autoficção brasileira é esse eu fruto de um trauma, que pode também ser um trauma coletivo, como a violência decorrente da desigualdade social explícita na sociedade brasileira e que explode em ficções como Cidade de Deus, ou mesmo em ficções autorreferentes de tom manifestamente político, a exemplo de Capão Pecado, de Férrez. Nelas, embora o homonimato ainda não esteja assumido, esse espaço do eu se amplia, saindo totalmente de um registro narcísico para se exteriorizar e se mesclar à geografia político-social que o desestrutura. Esse eu às vezes apela para uma autoficção-limite e se engaja nisso que gosto de chamar de narcisismo útil.
O eu, afinal, não é uma entidade mítica/mística isolada, distanciada do mundo e engolida pelo narcisismo. Pelo contrário, todo eu é invariavelmente fruto de uma cultura, de um país ou de uma diáspora e, ao se expressar, muitas vezes levanta questões coletivas relevantes, contribuindo, em sua micro-história, para reflexões mais amplas.
Termino citando Victor Hugo, que ainda no século XIX já antecipava toda essa questão numa frase que ficou célebre: “Quando digo eu, é de todos vocês que estou falando, seus infelizes!”


*Esse texto é parte da comunicação homônima apresentada na Université Paris-Sorbonne durante o “IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea: Práticas do Espaço”, organizado por Claire Williams (St. Peter’s College, University of Oxford), José Leonardo Tonus (Université Paris-Sorbonne) e Regina Dalcastagnè (Universidade de Brasília) entre 14 e 20 de janeiro de 2015.

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