29 de abril de 2017

As dificuldades da leitura no Brasil

Mirian Hisae Yaegashi Zappone

        Imagem: Regina Dalcastagnè

Embora esteja mais diretamente relacionada à instituição escolar e com ela, à formação e à prática de professores, o problema da leitura no Brasil abarca outros espaços (do privado de cada lar até as livrarias, das bibliotecas à internet, do gabinete de ministros até a banca da esquina) sobre os quais nem sempre, ou melhor, quase nunca, o leitor pode interferir. Isso porque se relacionam às questões do acesso ao livro e ao impresso que permeiam o político e permitem matizar a questão da leitura como prática que depende exclusivamente das escolhas do leitor e de sua “capacidade de leitura”.
Talvez, para alguns, eu não saia do lugar comum, mas acho que vale a pena tentar enxergar a questão da leitura em nosso país através de uma ótica que leve em conta dados numéricos sobre as condições de acesso ao livro e ao impresso e que se colocam como questões sociais que afetam diretamente as práticas de leitura dos indivíduos. Na verdade, fico muito desconfiada do discurso que tende a analisar nossa condição cultural, onde se insere a prática da leitura, como reflexo de um suposto desafeto que o brasileiro nutre pelas “coisas do espírito”. Seríamos nós preguiçosos em potencial, desinteressados pela leitura e realmente inaptos para ler e entender o que lemos ou os resultados de tantos testes de leitura e mesmo o desempenho de nossos estudantes em avaliações institucionais (ENEM, ENADE, Prova Brasil) em parte, são resultados de anos de ausência de uma política efetiva para o desenvolvimento da leitura e de facilitação de acesso ao livro? Fico, é claro, com a segunda possibilidade, para a qual arrolo alguns dados.
Desde 2001, um grupo de instituições formado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), pela Associação Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA), pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e pela Abrelivros realiza uma das maiores pesquisas de leitura no Brasil, a Retratos da Leitura. Ela cobre todos os estados a fim de identificar a penetração da leitura de livros no país, o acesso dos brasileiros a livros e impressos e os leitores efetivos.  
Essa pesquisa tem servido, em suas várias versões (2000, 2007, 2011 e 2016) para que se relativize a ideia corrente entre nós de que brasileiro é um não-leitor  e de que não gosta da leitura. Desafiando este estereótipo, a pesquisa mostra que a leitura é uma prática bastante presente na vida do brasileiro. Dentre o universo pesquisado (população com 5 anos ou mais e que correspondeu a 187 milhões de pessoas), os leitores efetivos (aqueles que leram ao menos um livro nos últimos 3 meses anteriores à pesquisa) representaram 56% da amostra, o que projeta uma estimativa populacional de 104 milhões de leitores! Pessimistas de plantão podem achar esses dados pouco contundentes para uma população que ultrapassa os 200 milhões de habitantes. Por isso, um paralelo com outros países pode ser frutífero. Na França, uma pesquisa semelhante realizada em 1989 detectou um índice de 49% de leitores efetivos, o que equivalia a 23,5 milhões de leitores. Portugal, em 1995, tinha um índice de 37% dessa mesma categoria de leitores. Como se vê, nossos 56% de leitores efetivos são expressivamente numerosos.
Mas, o que gostaria de destacar dessa pesquisa é que os índices de todos os tipos de leitores têm uma relação direta com os fatores escolaridade e classe econômica. Os resultados de 2016 reforçam uma tendência percebida desde 2007: quanto maior a escolaridade e a renda, maior é o hábito de leitura de livros, assim como também é maior entre aqueles que ainda são estudantes, evidenciando como questões econômicas e culturais relacionam-se diretamente com a leitura. Isso leva a duas conclusões óbvias, mas que parecem não ser levadas em conta quando se coloca o peso do nosso mau desempenho em leitura na inépcia dos estudantes: 1) que a escola, mesmo com todas as suas arestas, ainda é a principal formadora de leitores e divulgadora da leitura; 2) que as condições econômicas de uma população têm relação direta com seus hábitos culturais, nos quais se inclui a leitura.
Sem entrar na questão da escola, o que muitos já fizeram para debater a leitura, detenho-me na questão econômica. Parece-me pouco provável que, num país onde a vergonhosa desigualdade social produz 53 milhões de pobres dentre os quais 22 milhões vivem em estado de miséria, as pessoas canalizem seus recursos para a compra de materiais de leitura quando o grande dilema é, ainda, sobreviver. Some-se a isso o alto preço dos livros no Brasil devido às baixas tiragens. Ora, se não se pode ler por não se poder comprar o que ler, pensa o cético, por que não emprestar livros de uma biblioteca?
Aí reside outro problema que ajuda a pensar nas dificuldades da leitura neste país. O Brasil possui, inacreditavelmente, um número irrisório (também derrisório) desses lugares de culto à leitura. Espalhadas num território de 8.511.996 Km2, salpicado de cidades, há, segundo dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas - SNBP , aproximadamente 6.102 bibliotecas no país. Destaque-se que esse número cresceu vertiginosamente a partir de 1996, quando o Minc implantou, em 2009, o Programa Uma Biblioteca em Cada Município e os números passaram de 3.500 para o número atual. Indicadores internacionais apontam que o número ideal de bibliotecas é de uma para cada cinco ou seis mil habitantes o que, no caso brasileiro, coloca a demanda de pelo menos 18 mil bibliotecas!!!
Esse, contudo, é um problema apenas de quantidade, pois quando se fala em qualidade, são outras as questões. Com exceção da Biblioteca Nacional (a décima biblioteca do mundo) e de algumas centenas de bibliotecas de centros universitários, as insuficientes bibliotecas brasileiras carecem de acervo atualizado, de espaço físico adequado para atender o público, bem como de pessoal especializado para garantir seu bom funcionamento, mesmo com a implantação de algumas políticas públicas bastante férteis como o Programa Nacional Biblioteca na Escola, mas que atinge apenas bibliotecas escolares.
Mesmo quando o problema não é dinheiro para aquisição de livros e impressos, as condições não são muito favoráveis. Poucos são, ainda, os pontos de venda. Segundo informações da Associação Nacional de Livrarias e da Distribuidora de Bancas da Editora Abril (Dinap), as livrarias somavam 3.095 pontos em 2014 e as bancas de jornais e revistas em torno de 32 mil. Cidades como a minha, Maringá, no Paraná, com direito à megastore e livrarias de bom porte são raridades comparadas aos tantos rincões do gigante Brasil.
Some-se a esse estado de coisas o longo período de ausência de campanhas mais efetivas de incentivo à leitura. Leitores não se formam de uma hora para outra e um “país letrado” tem muito a ver com ações políticas de seus dirigentes. O Brasil tem dado saltos importantes em relação à sua maturação como país de letras: profissionalizou seus escritores, conta com um parque gráfico considerável capaz de atrair empreendedores estrangeiros para seu mercado livreiro e consolidou, finalmente, um público leitor. O que resta a fazer?
A resposta está na ampliação do número de leitores e no seu aprimoramento. É nesse sentido que entram as campanhas governamentais e a busca de uma política para o livro e a leitura que possam ser levadas a sério. A escola tem, como se viu, papel fundamental, mas não consegue agir sozinha. Acabo de realizar uma pesquisa sobre práticas de leitura na escola e o que constatei é que os professores conhecem, como a sociedade, a importância da leitura, mas as confusões teóricas permanecem e se refletem em atividades de ensino pouco produtivas. Culpa do professor? Muito pouco.
É preciso relembrar que há determinadas áreas de nossa vida social que demandam uma ação mais direta do Estado. Penso que a leitura é uma delas: há espaço para ações individuais, mas o essencial precisa ser feito pelo Governo, através de investimentos na formação dos profissionais ligados à educação, através da melhora das condições gerais de acesso ao livro e ao impresso e de um movimento sólido que justifique e mantenha a leitura na escola como meio para a formação de indivíduos letrados, no sentido do termo letramento, exposto pela professora Magda Soares, que abarca não só o domínio das técnicas de leitura e escrita, mas também seu uso frequente e competente no âmbito das práticas sociais desenvolvidas pelos indivíduos.
Nesse sentido, justifica-se uma luta pelo direito à leitura, nos mesmos moldes como se luta pelo direito ao ensino gratuito de qualidade, por condições dignas de vida, de segurança, de saúde, de igualdade. Lugares comuns nos discurso sobre leitura? Alguns sim, outros não, mas que servem para matizar um pouco mais a questão e discordar do ponto de vista dominante, que vê simplesmente na “indisposição” e na “inépcia” do brasileiro os pingos para todos os “is”.

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