1 de setembro de 2017

A potência da poesia de Luiza Romão

      Pilar Lago e Lousa



Imagem: Amy Judd


         Luiza Romão nasceu em agosto de 1992, em Ribeirão Preto. Mudou-se para a capital de São Paulo para fazer graduação e formou-se bacharel em Artes Cênicas (Direção). Durante o ano de 2013, a autora conheceu o Sarau do Burro, ficou encantada e passou a ser assídua. Em 2014 ganhou o Slam da Guilhermina, o Slam do 13 e foi vice-campeã do Slam BR, Campeonato Nacional de Poesia Falada[2].
Os slams, assim como os saraus, são movimentos de poesia falada inscritos sob a rubrica da literatura marginal periférica, que rasuram a tradição literária canônica devolvendo a arte poética para o espaço público, para as mãos de pessoas comuns, que de posse de um microfone e uma ideia na cabeça, como bem pontua Roberta Estrela D’Alva[3] (D’ALVA, 2011), dão o seu recado. Ainda que não exista uma obrigação temática, o que se verifica é uma estética do grito, um grito que rompe silêncios, que toma posse da autorrepresentação tradicionalmente negada, que desloca o olhar crítico para periferias e grupos minoritários, que pauta um viés político que denuncia e deflagra as mais diversas formas de violência simbólica, de gênero, física que atravessam nossa sociedade.
Luiza Romão traz a performance como característica primordial de seus poemas, que são escritos sob o ritmo, verso e cadência para serem lidos em voz alta. A mulher inscrita em seus versos deflagra estruturas patriarcais brutais e dilacerantes, evidenciando sua escrita como uma necessidade de desconstruir os padrões tradicionais de representação feminina.
Coquetel Motolove[4], seu primeiro livro lançado pelo selo independente Burro em 2014, traz o verso como projétil que toca nas feridas mais profundas. Na obra, a dedicatória também é poesia. Antes do início da primeira parte do livro, encontramos um poema sem título que é a síntese de Coquetel Motolove, nele Luiza Romão prenuncia o que virá nas próximas páginas, deflagra a poesia como um “corpo infesta/quando vários/são vírus/anti-sistema” (ROMÃO, 2014, p. 13). O eu lírico feminino deflagra o corpo poético infestado, coberto, tomado por um vírus que é capaz de destruir os padrões sociais, estéticos e literários.
Ainda neste poema, o eu poético traz temas como a noção da palavra falada que é arma contra a opressão, caracterizada pelo verso “molotov feito de saliva”. A oralidade, os versos falados, oriundos dos saraus e slams das periferias, queima, denuncia, desconstrói, coloca o dedo na ferida e promove resistência e luta:

a revolução não será televisionada
será dançada
suor também é combustível
motolov feito de saliva
motoloveyou baby
depois dos prédios
nos incendiaremos por completo (ROMÃO, 2014, p. 13)

Já no poema que veiculou pelo youtube com o título de “Virgem”, mas que ao ser publicado em livro aparece sem título, Luiza Romão propõe o olhar crítico pungente para a questão do que é ser mulher. A epígrafe traz os seguintes dizeres: “este texto não é um texto. este texto é um parto: tem a dor do que parte, do que fica, do que nasce” (ROMÃO, 2014, p. 21). Ao usar a palavra “parto”, Luiza inicia o poema deflagrando o processo de gerir a escrita, evidenciado que essa dor perpassa todas as alternativas que possam vir a ser escolhias: ficar, ir embora e nascer. Ser mulher invariavelmente dói.
Na primeira estrofe, o eu lírico nos traz a ruptura de um dos mitos mais primordiais das sociedades ocidentais: a virgindade:

ser virgem
está muito além de um hímen
da palavra ser ou não ter hífen
é matéria-prima
barro úmido
húmus:
human woman women (ROMÃO, 2014, p. 21)

Usada através dos tempos para controlar e dominar os corpos femininos, a virgindade como sinônimo de pureza e respeito é questionada nesses versos. Ser virgem está além da existência ou não do hímen por que ser mulher está muito além de ser virgem. Resgatando os estudos de Simone de Beauvoir (2009, p. 361), podemos verificar que repousa sobre a mulher uma teoria tradicional baseada na biologia que a reduz a uma concepção de mera procriadora da humanidade. A célebre frase “não se nasce mulher, torna-se” vem acompanhada da afirmação de que “nenhum destino biológico ou psíquico ou econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”, o que existe é um processo cruel de socialização que subalterniza o feminino em detrimento do masculino.
Sendo assim, a visão rasa, galgada na teoria biológica, amplamente difundida na sociedade patriarcal, que rechaça mulheres em função de sua constituição física não se sustenta, em virtude da imensa gama de possibilidades de representação. Uma mulher não é apenas uma esposa, mãe, prostitua ou objeto de desejo, mas como na imagem de um prisma, tem muitas facetas, podendo ser todas ou nenhuma. Entretanto, nenhuma dessas perspectivas é capaz de vislumbrar o que é o feminino, elas são ferramentas, muitas vezes usadas contra as mulheres para justificar as mais variadas barbaridades. Por fim, Luiza Romão deixa evidente que em contrapartida com essas assertivas, ser mulher está na ação:

porque ser mulher está além do artigo
está no sujeito:
que não se sujeita
que age, atua,
direto, intransitivo

está no sujeito
independente
de gênero, número
e grau (ROMÃO, 2014, p. 23)
        
Usando os elementos gramaticais, o eu lírico toma posse do discurso, reconhece seu lugar de subalterno e o repele, pratica a ação e ao intitular-se “direto, intransitivo” rejeita complementos, em uma metáfora que evidencia que a mulher não precisar estar atrelada à figura de um homem para existir, ela basta por si. Praticando a ação, esse sujeito “independente de gênero, número e grau” fragmenta o eu singular e o transborda em um eu coletivo, que conclama as demais mulheres a assumirem também suas vozes e corpos e se colocarem no mundo, por meio da empatia, em diálogo e postura combativa frente às opressões vividas.
No vídeo poema “Pau-Brasil[5]” a poeta coloca a lupa crítica sobre o sexismo, a misoginia e a cultura do estupro de uma maneira contundente e não panfletária, para evidenciar que a história do país foi construída sob o alicerce da violência de gênero:

PAU-BRASIL
o pau branco hegemônico
metido à torto e à direto
suposto direito histórico
de violar mulheres
o pau à pique
de arara
pau de sebo
o pau patriarcal
cara e orgulho nacional
A COLONIZAÇÃO FOI PELO ÚTERO
matas virgens
virgens mortas
A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO (ROMÃO)

Percebe-se ainda que não é qualquer “pau” que é retratado pelo poema, mas o “pau branco hegemônico/patriarcal”, aquele que é legitimado socialmente, aquele que tem o poder de fala, que representa uma maioria opressora e misógina, que mediatiza as minorias, que marginaliza o outro que se configura como diferente, aquele que se orgulha de tornar mulheres abjetas.
Quando o eu lírico denuncia nos seguintes versos que “A COLONIZAÇÃO FOI PELO ÚTERO/ matas virgens/ virgens mortas/ A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO”, evidencia a postura hegemônica e sexista que permeia a história do país. Quando afirma que a colonização foi pelo útero e de que esta também foi um estupro, revela a necessidade do colonizador de subjugar e violentar as mulheres oriundas de outra cultura, a fim de demonstrar quem de fato domina as relações de poder. Carneiro, em estudo sobre a situação da mulher negra na América Latina, vai justamente evidenciar essa questão afirmando: “Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos mais emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor” (CARNEIRO, 2003, p. 49).
Para o seu próximo livro intitulado Sangria, que deve ser lançado em setembro deste ano, Luiza Romão alterou o poema “Pau-Brasil” num processo que ela mesma chama de edição. Aqui usaremos o texto que consta na declamação que foi publicada no vídeo do Slam da Resistência, no youtube, por que entendemos aquela performance naquele contesto muito emblemática e em uma tentativa também de instigar os leitores a procurar o vídeo e entender um pouco da atmosfera que cerca Luiza Romão.
         Sangria é um projeto ousado e multi-plataforma, a impressão do livro contou com uma campanha no Catarse. Segundo a própria autora no vídeo de lançamento da campanha o preceito do livro é “revisitar a história do país pela ótica de um útero[6]”. Serão vinte e oito poemas, vinte e oito dias, que simulam um ciclo menstrual. Esses poemas são acompanhados de fotos que performam o silenciamento das mulheres.
         O que se pode esperar de Sangria, e mais uma vez de Luiza Romã, é a poesia que rasura a tradição e cliva um novo fazer estético e literário que rompe paradigmas e tabus. Versos que inscrevem na literatura a força da poesia falada, do projeto político que descontrói discursos hegemônicos e dá voz a mulheres até então subalternizadas e consideradas abjetas. O que se espera de Luiza Romão é a caneta em legítima revolta, a potência que contra-ataca e cria espaços de afeto onde existiam apenas espaços de dor.

Obras citadas:

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo.  Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In.: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003, p. 49-58.

D’ALVA, Roberta Estrela. Um microfone na mão e uma ideia na cabeça – o poetry slam entram em cena.  Synergies Brésil, nº 9, pp. 119-126, 2011. Disponível em http://gerflint.fr/Base/Bresil9/estrela.pdf . Acesso em 03 jun 2017.

ROMAO, Luiza (2014). Coquetel Motolove. São Paulo: Selo Burro.



[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás. Bolsista Capes. Orientanda do Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo. E-mail: pilarbu@gmail.com
[2] Informações coletadas em entrevista presencial concedida pela poeta Luiza Romão em 24 de julho de 2017.
[3] Roberta Estrela D’Alva é a alcunha Roberta Marques do Nascimento, poeta, escritora, cantora de hip hop, pesquisadora e uma das principais e mais importantes slamers do Brasil. Foi Roberta quem trouxe o ZAP!, primeiro slam a ser realizado no país.
[4] Apesar de, na grafia da capa do livro, constar Coketel (com K), tanto na ficha bibliográfica do livro quanto na página da autora nas redes sociais, a grafia aparece como Coquetel (com “q” e “u”).
[5] Vídeo disponível na página do Slam da Resistência: https://www.youtube.com/watch?v=s73GoR-PTcY, acesso em 05 de abril de 2016.
[6] Fala completa disponível no site https://www.catarse.me/sangria

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