25 de agosto de 2017

A literatura e a história em romances contemporâneos

Júlia Braga Neves
Humboldt-Universität zu Berlin/ King's College London


Imagem: Carrie Moyer


Em seus textos sobre historiografia, Hayden White reforça os pontos em comum entre a literatura e a história ao alegar que os dois tipos de discurso operam sob as normas da linguagem e da narratividade (White, 1999, p. 6). Assim como a narrativa literária, o texto histórico depende da seleção de informações, da interpretação de fatos e também de decisões que dizem respeito à forma, à organização da narrativa e aos discursos que esta irá comunicar. White é enfático em sua tese de que não há objetividade na produção de narrativas históricas porque estas estão sempre sujeitas a reflexões autorais e a interpretações de documentos históricos oficiais. Para White, não se trata de negar o fato histórico em si nem de defender que as narrativas históricas sejam ficções, mas de ressaltar que existem, de fato, elementos subjetivos na construção de discursos históricos e que eles provêm, em grande parte, do caráter autoral, linguístico e narrativo presentes na produção historiográfica.

É claro que a literatura apresenta características particulares no que se trata da narratividade, pois a ficcionalidade possibilita a criação de mundos que podem existir de acordo com normas sociais que diferem da realidade. No entanto, a literatura, mesmo com seu caráter ficcional, está sempre entrelaçada a discursos históricos. A relação entre história e literatura dá-se, principalmente, na forma de romances históricos, gênero consagrado pela teoria de Georg Lukács no clássico O Romance Histórico, publicado originalmente em 1937. Ao traçar o desenvolvimento do gênero desde o século XVIII, Lukács identifica o romance histórico com a emergência do estado nação moderno no final do século XVIII e aponta a obra de Sir Walter Scott como a maior influência do gênero, que utiliza técnicas realistas para conferir veracidade à narrativa histórica dentro da sua forma ficcional. O teórico húngaro atribui ao gênero a função de tratar “do despertar ficcional dos homens” que protagonizaram a história e de “figurar de modo vivo as motivações sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de maneira precisa, retratando como isso aconteceu na realidade histórica” (Lukács, 2011, p. 137).

Na crítica literária feminista, a visão de Lukács tem sido criticada principalmente a partir da década de 1970 quando o feminismo ganhou força no cenário acadêmico. Ruth Hoberman, por exemplo, alega que a relação que Lukács defende entre personagens e suas conquistas históricas só pode ser realizada por “figuras que são livres para vagar, conhecer pessoas e obter poder” (Hoberman, 1990, p. 356, tradução minha). Como se sabe, as mulheres – assim como minorias étnicas e raciais – foram impedidas de acessar os privilégios de mobilidade, poder, autoria e liderança ao longo da história e tiveram de se engajar em intensas lutas para adquirirem direitos políticos e sociais. Hoberman, então, afirma que as teorias de Lukács sobre a ficção histórica apagam “as particularidades das experiências das mulheres”, o que resulta na “reiteração da ausência de mulheres dentro da história” (Ibidem, p. 357, tradução minha). O mesmo pode-se dizer sobre minorias étnicas, raciais e sexuais.

É exatamente essa questão de ‘ausências’ e ‘lacunas’ dentro da historiografia que romances históricos contemporâneos tentam preencher. Na literatura inglesa, as obras neo-Vitorianas de Sarah Waters, por exemplo, visam criar um arquivo histórico ficcional para lésbicas, tendo em vista que os registros oficiais sobre mulheres homossexuais no século XIX na Inglaterra são escassos. Por ter sido considerada crime de 1885 até 1967 na Grã-Bretanha, a homossexualidade entre homens sempre foi um tema de debate público que ganhou força com o julgamento de Oscar Wilde em 1895, no qual o escritor foi condenado a dois anos de prisão por sodomia e obscenidade. Em contrapartida, a imprensa, juristas e setores conservadores da sociedade britânica acreditavam que não seria de bom tom discutir homossexualidade entre mulheres publicamente porque isso poderia dar ideias imorais a elas, que acreditariam no amor e no desejo sexual sem a presença masculina e fora dos padrões do casamento. Porém, isso não quer dizer que mulheres não eram punidas quando flagradas em relações sexuais com outras mulheres: elas eram comumente internadas em instituições psiquiátricas ou religiosas, onde sofriam tratamentos abusivos e violentos que tentavam ajustar as mulheres a padrões de feminilidade baseados na domesticidade, na maternidade e no casamento.

Na obra de Sarah Waters, principalmente em seus três primeiros romances, a escritora propõe a criação de arquivos históricos ficcionais que representem possíveis passados para lésbicas na Inglaterra. Esses passados históricos são construídos a partir de pesquisas históricas aprofundadas sobre o período Vitoriano (1837-1901) que são retratadas a partir da reprodução crítica de técnicas e gêneros literários vitorianos, como o realismo social, o gótico e o romance de sensação. Além de entrelaçar a pesquisa histórica com tradições literárias, Waters acrescenta às suas versões do século XIX temáticas contemporâneas presentes nas teorias queer e feministas do século XX. Um exemplo é o seu primeiro romance, Tipping the Velvet (1998), que se passa no final do século XIX. Nele, Waters utiliza a cena teatral de Londres, o desenvolvimento urbano e as diferenças sociais entre o Leste e Oeste da cidade no século XIX para apresentar as discussões levantadas por Judith Butler sobre a construção de identidade de gênero e de sexualidade a partir da repetição de normas estabelecidas por relações históricas e culturais.

O teatro em Tipping the Velvet não é apenas um cenário no romance, mas é a sua essência, pois ele é representado pelo sucesso dos chamados male impersonation acts, números teatrais nos quais atrizes interpretavam homens em teatros populares na Londres vitoriana. Essas performances teatrais eram paródias do comportamento masculino e eram consideradas subversivas porque, além de ridicularizar os homens, principalmente aqueles de classe social mais alta, elas também poderiam comunicar a ideia de que as mulheres seriam capazes de ter as mesmas liberdades que os homens. Não é à toa que a artista Vesta Tilley, em quem Waters baseou sua protagonista Nancy Astley, sofreu diversas hostilidades públicas por ser considerada um símbolo de autonomia e independência. Tilley foi uma das mais famosas da cena teatral de Londres no final do século XIX com sua encenação musical de personagens masculinos. Embora Waters não apresente nenhuma personagem cuja significância tenha sido reconhecida pela história tradicional, como é o caso de Tilley, muitas delas são baseadas em mulheres de extrema importância na história cultural, social e literária inglesa. Enquanto Nancy Astley representa o talento e independência artísticos de Tilley, a autonomia de mobilidade e de atuação no espaço urbano, sua companheira Florence Banner, inspirada na ativista social e enfermeira Florence Nightingale e na ativista socialista Eleanor Marx, personifica a luta feminista da classe trabalhadora no Leste de Londres.

Não se trata, como na teoria de Lukács, de apresentar personagens históricos para validar a historicidade presente no ficcional, mas de mostrar como o arquivo histórico muitas vezes omite, exclui ou diminui a importância histórica das mulheres. Ainda há muitos teóricos e historiadores que sustentam a ideia de que mulheres no século XIX eram submissas, passivas e completamente devotas aos seus maridos e, embora esse comportamento fosse de fato dominante, sabemos que ele era idealizado e que muitas mulheres o rechaçavam. Além disso, esse modelo de feminilidade do século XIX correspondia a um ideal das classes média e alta, cujas mulheres não tinham a necessidade de trabalhar. As mulheres trabalhadoras, protagonizadas no romance pela personagem de Florence Banner e suas amigas de Bethnal Green, tinham vidas fora da esfera doméstica na rotina de dupla jornada do trabalho mal pago e do trabalho doméstico de suas casas.

No Brasil, a literatura produzida por mulheres também aborda as exclusões de discursos históricos e culturais tradicionais, conforme elucidado nesse post de Paula Dutra. Um exemplo na literatura brasileira contemporânea é o romance histórico Um Defeito de Cor (2006) de Ana Maria Gonçalves. Narrado em primeira pessoa e em formato autobiográfico, o livro conta a história de Kehinde, uma escrava capturada ainda criança no Reino de Daomé (atualmente denominado Benim) e levada para o Brasil com sua irmã gêmea e com sua avó por traficantes de escravos. A trajetória de Kehinde passa pela Bahia, pelo Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e Benim e o seu relato, escrito em retrospectiva quando a personagem já é idosa, abrange a violência do Brasil colonial e também a resistência dos escravos contra a exploração e a violência escravista. Ao conseguir comprar sua liberdade, Kehinde passa a viver com um português branco com quem tem um filho, o qual é vendido ilegalmente como escravo pelo próprio pai.

No prefácio do livro, Gonçalves antecipa as origens do romance que, segundo ela, se deu por uma ‘serendipidade’, palavra usada para descrever uma “situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra” (Gonçalves, 2016, p.9). Em pesquisa sobre a Revolta dos Malês em Salvador, Gonçalves mudou-se para a Bahia e passou um tempo na Ilha de Itaparica, onde, por acaso, encontrou um manuscrito anônimo supostamente produzido no século XIX que relatava a trajetória de Kehinde em forma autobiográfica. As páginas perdidas e ilegíveis do manuscrito foram preenchidas por Gonçalves, que complementou os escritos com a sua própria ficção e o seu conhecimento histórico adquirido durante a pesquisa sobre a Revolta dos Malês. Sendo assim, é possível afirmar que existe nesse romance um diálogo entre história e literatura no sentido em que o manuscrito é uma mistura de memória histórica e ficção, representada pela escrita de Gonçalves.

Não se sabe se o texto foi escrito por uma escrava ou se foi inventado por uma autora. Segundo Gonçalves, “[e]specula-se que [a história] pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam.” (Gonçalves, 2016, p. 16). Gonçalves aponta que há, de fato, precisão de datas, locais, nomes e acontecimentos históricos no manuscrito que sugerem autenticidade histórica no documento. No entanto, Gonçalves diz que “é bom que a dúvida prevaleça” (Gonçalves, 2016, p. 17), pois o manuscrito, mesmo misturando o histórico com o ficcional, relata uma história de violência, resistência e sofrimento causados pelo tráfico de escravos.

O que chama a atenção no livro são os detalhes sobre a organização de resistência entre os escravos e também o sincretismo religioso e cultural das diversas comunidades africanas no Brasil. Além disso, o romance mostra a complexidade do sistema escravocrata na esfera mundial ao entrecruzar as histórias da escravidão no Brasil e a independência de Portugal com as expedições colonizadoras da Inglaterra. O romance começa em 1810, três anos depois de a Inglaterra abolir oficialmente a escravidão em seu território nacional, ainda que ela fosse permitida em suas colônias, onde a escravidão só fora abolida em 1833. O romance de Gonçalves deixa claro que os interesses ingleses na abolição estavam mais ligados aos lucros capitalistas do que a preocupações sobre direitos humanos:

[...] fiquei sabendo que os ingleses eram contra a escravatura. Não porque fossem bonzinhos e achassem que também éramos gente, como de fato faziam pensar nos tratando melhor que os senhores portugueses ou brasileiros, mas porque tinham interesse em que fôssemos libertos. [...] Foi naquela casa que fiquei sabendo que não havia mais escravos nem em Inglaterra nem nos seus domínios, que todas as pessoas eram livres para morar e trabalhar onde quisessem, recebendo dinheiro. Era isso que os ingleses mais queriam, que todos tivessem dinheiro para comprar as mercadorias produzidas nas grandes fábricas construídas em Inglaterra. (Gonçalves, 2016, p. 220).

Ao entrelaçar ficção e história, o romance de Gonçalves toca em questões importantes sobre a escravidão não somente no Brasil, mas também no cenário colonial do século XIX. Tanto o romance de Sarah Waters como o de Ana Maria Gonçalves retratam o passado histórico em perspectiva presente, abordando o apagamento histórico referentes, respectivamente, às mulheres lésbicas na Inglaterra e às mulheres negras no Brasil. Nesses romances, não há uma busca de uma ‘verdade histórica’ ou a necessidade de representar ‘grandes conquistas dos homens’, mas de ressaltar a violência e a exclusão presentes na historiografia tradicional.  

Obras citadas:

GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro: Record, 2016 (2006).
HOBERMAN, Ruth. “Multiplying the Past: Gender and Narrative in Bryher’s ‘Gate to the Sea’”. In: Contemporary Literature, 31.3 (Outuno 1990), pp. 354-372.
LUKÁCS, György. O Romance Histórico. Rubens Enderle (trad.). São Paulo: Boitempo, 2011 (1937).
WATERS, Sarah. Tipping the Velvet. Londres: Virago Press, 2009 (1998).
WHITE, Hayden. Figural Realism: Studies in the Mimesis Effect. Baltimore e Londres: John Hopkins University Press, 1999.


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